Venda de imóveis
Não se deve perder de vista que nas operações de compra e venda de imóveis pesam o estatuto e as motivações de quem vende e de quem compra, que podem ser investidores especializados, profissionais que compram para, com lucro, revender mais tarde.
Não se deve perder de vista que nas operações de compra e venda de imóveis pesam o estatuto e as motivações de quem vende – que podem incluir entidades públicas ou toda uma série de actores institucionais, como bancos e companhias de seguros – e de quem compra, que podem ser investidores especializados, profissionais que compram para, com lucro, revender mais tarde. Também, os valores de avaliação constantes do balanço podem ser muito diferentes consoante o momento da avaliação e as circunstâncias do vendedor – o valor histórico de aquisição e o valor de venda estimado não serão necessáriamente coincidentes, e o valor de venda dos activos de uma entidade em liquidação será certamente muito mais baixo.
O processo de avaliação é também condicionado pela idoneidade e pela experiência profissional dos avaliadores, o que nem sempre é tido em conta, inclusive porque, ainda que existam listas de avaliadores oficiais, que exigem determinados requisitos para a inscrição, nem sempre é feito um acompanhamento do seu desempenho.
Acresce que o próprio método de venda no “mercado” é susceptível de influenciar o valor das propostas e da transacção.
No que respeita ao Estado, durante muito tempo as vendas de imóveis obedeceram a imperativos de “desamortização” do seu domínio privado disponível enunciados desde o século XIX e particularmente dos bens expropriados às Ordens Religiosas. Muitas fortunas privadas nasceram nessa altura sem que o erário público beneficiasse grande coisa. Depois seguiu-se a rotina, e o Regulamento da Fazenda Pública de 4 de Janeiro de 1870 obrigou os serviços centrais do Ministério das Finanças a corresponderem-se com os serviços locais através dos serviços distritais, de onde resultava que quando determinados prédios urbanos, rústicos ou mistos iam à praça pelo país fora, o preço base era determinado por avaliações questionáveis e as licitações se faziam num ambiente pouco propício à obtenção de valores de venda elevados. Alguma coisa foi mudando, e já em tempos mais recentes foi criada a Estamo, que ainda hoje existe no âmbito do grupo Parpública, para promover a venda de imóveis recentemente desocupados, por vezes precedida por uma intervenção mais sofisticada visando a sua valorização posterior, e até de imóveis que os serviços públicos continuaram a ocupar em regime de arrendamento. O Estado, desesperadamente necessitado de dinheiro, em liquidação? Pelo menos parecia e estas operações nunca terão sido satisfatoriamente avaliadas.
Alguns casos, só aparentemente isolados
Houve casos de vendas por valores escandalosamente baixos? Não deixaram de surgir acusações quando os imóveis alienados foram logo a seguir revendidos / ou postos à venda por valores muito mais elevados.
Recordo, entre outros:
· o caso da venda do edifício dos CTT de Coimbra que deu origem a um processo crime no final do qual se registaram absolvições, mas também condenações;
· o caso da venda pela Estamo dos imóveis correspondentes ao antigo Hospital de Arroios, em Lisboa;
· o caso mais recente, que ainda anda pelos títulos da comunicação social, o da venda de terrenos da RTP em Gaia, que deixaram de interessar àquela empresa, que deliberou iniciar a sua alienação depois das avaliações da praxe, cumprindo todos os regulamentos internos, etc..
Por vezes imputam-se – correctamente ou não – estas “surpresas” à presença de dinheiro à procura de “lavagem” que não ousa aparecer na compra directa ao Estado ou a outras entidades públicas, mas logo a seguir faz as suas ofertas aos adquirentes.
Em todo o caso tenho presente, numa transacção entre privados, o encerramento em 1999 do que julgo ter sido a última fábrica de lanifícios de Lisboa, na zona do Parque das Nações, sendo o respectivo imóvel adquirido por 4 milhões e meio de contos, sem que durante vinte anos o projecto imobiliário parecesse avançar. Na Grande Lisboa outros terrenos ou imóveis fabris desactivados mudaram de mãos também sem consequências visíveis em termos de edificado. Um negócio que parece viver de rentabilidades a longo prazo…
O drama das garantias reais da banca
Quando um crédito concedido pela banca começa a ficar “mal parado”, isto é, quando o devedor começa a não conseguir fazer face ao serviço de dívida, não há em princípio razões para reconhecer uma perda na parte que está coberta por garantias reais, pelo menos na parte em que estas consistam em garantias hipotecárias sobre imóveis, sobretudo quando se trate de imóveis residenciais ou de escritórios. Já as garantias sobre instalações fabris serão mais difíceis de executar sem paralisação da actividade dos devedores no entanto se o grupo em que o banco se insere contar com uma sociedade de locação financeira imobiliária e se a empresa tiver condições para continuar a funcionar por mais algum tempo, uma operação de lease-back poderá resolver de momento a questão.
Até aqui as contas do banco não são sensivelmente afectadas pelas dificuldades dos devedores, e se o banco tiver de operar um write-off da parte perdida do crédito, não tem de incluir a parte ainda coberta pela garantia hipotecária. É claro que se a situação do devedor não tiver solução entram em acção os serviços de contencioso para executar a garantia, podendo o banco, no processo executivo, reservar a propriedade do imóvel sem exigir que a venda seja levada até ao fim, ou, dentro ou fora de processo executivo, aceitar a dação em pagamento quer do próprio bem sobre o qual incide a garantia, quer de outros bens do devedor. Tudo isto pode ser moroso, em caso de processo de insolvência ou equiparável, mas, a não ser nos casos em que a situação, pelo impacto da actividade do devedor, por circunstâncias especiais de relacionamento deste com o banco ou algum dos seus accionistas / administradores ou pela existência de diversos bancos envolvidos, exija um acompanhamento mais intenso, já não será a área comercial, e muito menos o balcão através do qual o empréstimo foi contratado, a acompanhar o assunto.
Em períodos de crise a banca, que não tem estruturas suficientemente dimensionadas ou apetrechadas para gerir estes activos, tem dificuldade em aliená-los, se é que chega a tentar fazê-lo, uma vez que a alienação pode obrigar a reconhecer contabilísticamente perdas até aí camufladas. Algumas instituições publicitaram programas de venda de imóveis com desconto, dirigidos para o grande público, mas aparentemente não houve um esforço generalizado de os lançar no mercado, por exemplo através de mediadores imobiliários, aproveitando a subida dos preços.
Uma liquidação quase forçada
Quer por força das sucessivas modificações quanto a exigências Internacionais relativas a rácios de solvabilidade, quer porque a situação da banca portuguesa e de outros países tem vindo a merecer uma atenção reforçada por parte da Comissão Europeia, os bancos portugueses vieram a sofrer pressões acrescidas para reduzir o volume dos seus Non Performing Loans e para alienarem os seus Non Perfoming Assets, como é o caso dos imóveis obtidos por execução de garantias ou por dação em pagamento.
Em inglês parece tudo mais técnico, e a avaliar pela forma como alguns comunicados bancários se referem aos Non Performing Assets, mais parece que estes teriam resultado de erros na política de aquisição de imobilizado das instituições.
E o facto é que vários bancos com este género de “contrariedades” têm vindo a participar num esforço de “emulação” em que os imóveis são vendidos em carteiras de centenas de milhões de euros – cuja forma de definição só por si coloca algumas questões que mereciam averiguação – a operadores financeiros especializados, num “mercado” muito pouco competitivo, dados os requisitos de acesso, e não no mercado de retalho acessível ao grande público:
Em 12 de Setembro de 2018, noticiava-se acerca do Projecto Viriato, do Novo Banco:
O Novo Banco já deu início ao processo de venda de um portefólio de 9.000 ativos imobiliários, cujo valor ascende a mais de 700 milhões de euros. Com este processo, o banco liderado por António Ramalho quer alienar o “Project Viriato”, que integra imóveis situados, sobretudo, em Lisboa e no Porto …
O banco convidou a Anchorage Capital Partners, o Bain Capital Credit e o Arrow Global Group, onde a ex-ministra das Finanças Maria Luís Albuquerque é administradora não executiva, a apresentarem ofertas …
Cerca de metade dos edifícios que o Novo Banco quer vender são residenciais, um quarto são imóveis comerciais e os restantes 25 % são terrenos…”
Menos de um mês depois já estava o contrato-promessa relativa à Carteira Viriato fechado com a Anchorage por 390 milhões de euros, ou seja, pouco mais de metade do valor.
Também em 2018 a Caixa Geral de Depósitos deu um ar da sua graça vendendo imóveis:
A Caixa Geral de Depósitos alienou no primeiro semestre mais de 300 milhões de euros em imóveis, dos quais 110 milhões de euros já estão escriturados (com escrituras feitas)….
No primeiro semestre foram vendidos 1.138 imóveis.”
Em Outubro de 2019 igualmente o Montepio reclamou uma medalha pelo seu esforço de alienação de imóveis que alienou:
O Banco Montepio anunciou a venda de uma carteira de ativos imobiliários no valor de 102 milhões de euros a uma empresa portuguesa integralmente detida por um consórcio de investidores estrangeiros que reforçou desta forma o seu posicionamento no mercado português, informou a instituição.
“A carteira “BRICK”, com um valor bruto contabilístico de 102 milhões de euros, é composta por 1062 imóveis, com uso predominantemente residencial, dispersos pelo território português. Após a concretização da venda, a gestão da carteira será realizada por uma entidade de referência em Portugal na gestão deste tipo de ativos”, realçou o Banco Montepio”.
O próprio Bankinter, que comprara o negócio do Barclays em Portugal havia sentido a necessidade de esclarecer a dimensão dos imóveis em carteira:
O Bankinter explicou que a sua carteira de ativos imobiliários hipotecados experimentou “uma redução significativa”, no final de 2017, para um valor bruto total de 411,6 milhões de euros (111,9 milhões menos que há um ano atrás), dos quais 44% são imóveis residenciais. A cobertura de execuções hipotecárias é de 45,2%, esclareceu ainda a instituição.
Em Portugal, a carteira de execução de hipotecas por incumprimento de crédito é de 400 imóveis, quase exclusivamente residenciais, num valor que ronda 40 milhões, ou seja, 10% do valor consolidado.”
Se a venda da carteira “Viriato” pelo Novo Banco parece ter passado relativamente despercebida, apesar da perda de valor envolvida, não aconteceu o mesmo com a carteira “Sertório”, valorizada em 500 milhões de euros, cuja venda foi lançada em Abril de 2019 e concluída em Agosto daquele ano:
O Novo Banco enviou aos investidores o anúncio de lançamento de um novo portefólio composto por 200 ativos imobiliários e com o valor contabilístico bruto de 500 milhões de euros …
A carteira consiste principalmente (cerca de dois terços) em terrenos não edificados e alguns ativos imobiliários industriais, mas há também alguns imóveis residenciais e comerciais. …A maioria dos imóveis em causa estão concentrados nos distritos de Lisboa e Setúbal.”
Em dois artigos do Público assinados pela jornalista Cristina Ferreira, intitulados respectivamente “Sertorius, um projecto ruinoso” e “Novo Banco vendeu activos com 70 % de desconto a fundo ao qual o seu chairman esteve ligado”, a operação foi naturalmente escrutinada, levando o Novo Banco a reagir:
Seguiram-se os preceitos previstos na legislação bancária nacional e adicionalmente cumpriu-se assim o compromisso 12 acordado entre a Comissão Europeia e o Estado Português”, adianta a nota.
Para reduzir de forma eficaz o excesso de imóveis que havia herdado do passado, o Novo Banco explica que lançou dois concursos internacionais abertos e transparentes para vender duas carteiras de imóveis a que chamou Viriato e Sertorius. Obteve com estas vendas o montante de 523 milhões de Euros (que é a soma da carteira Viriato vendida por 364 milhões + com o portfólio Sertorius vendido por 159 milhões) e, diz o banco, “foi o preço de mercado obtido para estes imóveis através de concursos internacionais, transparentes e abertos”….
Esta carteira de imóveis foi vendida por 159 milhões de euros. O Público sustentou a sua notícia do desconto, comparando com o valor bruto contabilístico destes ativos imobiliários de 487,8 milhões de euros. No entanto, “a diferença quanto ao valor de avaliação no balanço destes imóveis, que sempre pode existir, não é um desconto, é o efeito da diferença entre o preço de mercado e o valor de avaliações que seguem o método de custo ou que assumem diferentes estimativas de capacidade construtiva”.
Será o Novo Banco um caso especialmente aberrante?
Neste universo já só intervêm fundos, o que comprou o Novo Banco e aqueles que, sabendo que poderão vir a obter ganhos muito avultados, ele convoca para negociar as vendas de imóveis pelo valor de mercado.
Não fora a circunstância de uma parte do reconhecimento destas perdas de valor se traduzir em reforços de capital contingente através do “Fundo de Resolução”, que aliás, diz a administração do Novo Banco, concordou com as operações de alienação, nem sequer se falaria do assunto.
É curioso que só agora tenha surgido uma absoluta necessidade de olhar para os contratos, em cuja celebração intervieram o Banco de Portugal e o Governo e que foram negociados sabe-se bem por quem.
Fonte: Jornal Tornado
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